A invenção de “jaywalking” (atravessamento não autorizado)
Sarah Goodyear
24 de Abril, 2012.
Aconteceu de novo na última noite.
Desta vez, o condutor de um Jaguar circulando pela Rua 42 em Manhattan atingiu outro carro e perdeu o controlo capotando para o passeio e atingindo vários peões. Por incrível que pareça uma vez que esta é uma das zonas mais movimentadas da cidade, ninguém morreu. Menos surpreendente, dada a abordagem geral do Departamento de Polícia de Nova Iorque em relação a acidentes carro-peões ou carro-bicicleta, o automobilista não vai aparentemente enfrentar quaisquer acusações criminais.
Apesar dos recentes e notáveis ganhos em segurança dos peões – graças em parte às mudanças dos traçados destinadas a desacelerar a condução – os carros ainda saltam os passeios quase todos os dias. Automobilistas que matam ou mutilam peões com os seus veículos ainda são raramente tratados como criminosos em Nova Iorque, desde que não estejam embriagados e não fujam do local. Mesmo isso às vezes não é suficiente para merecerem acusações sérias.
Há vinte anos, um condutor fora de controlo rasgou o Washington Square Park em Nova Iorque, matando cinco pessoas e ferindo outras 27. O horrível acidente causou um clamor público e galvanizou os defensores daquilo que se tornou conhecido como o movimento “ruas para viver”. Mas a automobilista, uma mulher de 74 anos de idade, não foi acusada de qualquer crime.
Nem sempre foi assim. Basta folhear as notícias do New York Times sobre peões que morreram depois de atingidos por automóveis antes de 1930 e verificar que em quase todos os casos o automobilista foi acusado de algo como “homicídio técnico involuntário”. E não apenas em Nova Iorque. Em todo o país, os automobilistas eram responsabilizados criminalmente quando matavam ou feriam pessoas com seus veículos.
Então o que aconteceu? E quando?
De acordo com Peter Norton, professor assistente na Universidade de Virgínia e autor de “Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City” (algo como “Lutando contra o tráfego: O nascimento da idade do motor na cidade americana”), a mudança não foi acidental (por assim dizer). Peter Norton fez uma extensa pesquisa sobre a forma como a nossa visão das ruas foi sistemática e deliberadamente mudada pela indústria automóvel, como o foi a própria lei.
“Se se perguntar hoje às pessoas para que é que serve uma rua vão responder, carros”, diz Norton. “O que é praticamente o oposto do que teriam dito há 100 anos.”
As ruas nessa altura eram lugares vibrantes, com uma multidão de utilizadores e utilizações. Quando o automóvel apareceu pela primeira vez, diz Norton, foi visto como um intruso e uma ameaça. Cartoons editoriais representavam regularmente “ a Morte” atrás do volante. Essa imagem persistiu até a década de 1920.
Hoje, os defensores das ruas habitáveis, como o “Transportation Alternatives” de Nova Iorque gastam muito tempo e energia a tentar que as pessoas levem a sério as mortes de peões. Mas no início do século XX, as mortes no trânsito – particularmente as mortes de crianças – atraíam enorme atenção.
“Se uma criança é atropelada e morta por um automóvel em 2012, é tratada como uma perda privada, a ser chorada em privado pela família”, afirma Norton. “Antes, estas coisas eram tratadas como perdas públicas – muito parecidas com a morte de soldados.” Presidentes de Câmaras dedicavam monumentos às vítimas de crimes de trânsito, acompanhados por bandas e crianças vestidas de branco, carregando flores.
“Estamos a falar menos de leis do que de normas”, afirma Norton. Cita um editorial de 1923 do St. Louis Post-Dispatch – uma instituição solidamente convencional, como ele faz notar. O jornal defendeu que, mesmo no caso de uma criança se ter lançado para a estrada, um automobilista que declinava responsabilidade estava cometendo “o perjúrio do assassino.”
Norton explica que nos primeiros anos do automóvel, aplicavam-se às colisões os princípios do direito comum. No caso de uma colisão, o veículo maior, mais pesado, era considerado culpado. A responsabilidade por acidentes estava sempre no automobilista.
A opinião pública estava também do lado do peão. “Havia muita raiva nos primeiros anos”, diz Norton. “Muito ressentimento contra os carros por pôr as ruas em perigo.” Automóvel-clubes e fabricantes perceberam que tinham um grande problema de imagem, afirma Norton, e começaram a mexer-se agressivamente para mudar a maneira como os americanos pensavam sobre carros, ruas e tráfego. “Disseram: ‘Se queremos ter um futuro para os carros na cidade, temos que mudar isso. Os carros estão a ser retratados como máquinas assassinas de Satanás.”
A AAA (American Automobile Association ) e outros clubes automóveis viraram-se primeiro para a geração mais jovem, financiando programas educativos de segurança nas escolas públicas que foram projetados para ensinar às crianças que as ruas são para os carros, não para as crianças. Financiaram patrulhas de segurança que ensinavam às crianças que tinham que parar para deixar passar o tráfego, e não ao contrário.
Um ponto de viragem fundamental, de acordo com Norton, veio em 1923, em Cincinnati. A ira dos cidadãos por causa das mortes de peões deu origem a um movimento referendário. O movimento reuniu cerca de 7.000 assinaturas de apoio a uma lei que teria exigido que todos os veículos na cidade fossem equipados com reguladores de velocidade limitando-os a 40 quilômetros por hora.
Os automóvel-clubes e comerciantes locais reconheceram que os carros seriam muito mais difíceis de vender, se houvesse um limite para a velocidade. Então empenharam-se na sua campanha contra a iniciativa. Enviaram cartas a cada indivíduo com carro na cidade, dizendo que a lei condenaria os EUA ao destino da China, que pintaram como a nação mais atrasada do mundo. Chegaram a contratar mulheres bonitas para convidar os homens a dirigir-se às urnas e votar contra a lei. E a medida falhou.
Também conseguiram envolver Detroit. Os construtores de automóveis uniram-se para ajudar a combater a lei de Cincinnati, de acordo com Norton. “E permaneceram organizados depois disso”, diz ele.
A indústria fez lobby para mudar a lei, promovendo a adoção de códigos da estrada para suplantar a lei geral. Os códigos foram projetados para restringir a utilização da rua pelos peões e dar prioridade aos carros. A ideia de “jaywalking” (andar descuidadamente na rua) – um conceito que na realidade nunca tinha existido antes de 1920 – foi consagrada na lei.
A configuração atual da rua americana e as regras que a regem não são o resultado de nenhum processo orgânico inevitável. “Foi mais como uma briga”, diz Norton. “Onde o brigão mais forte vence.”
Este texto é a tradução do artigo The Invention of Jaywalking, feita por Rui Martins, a quem agradeço pessoalmente, pois tudo o que ajudar a perceber como chegámos à situação actual pode abrir cabeças aos peões adormecidos que acham que é tudo normal e sempre foi assim.
Vamos lá recuperar as cidades para as pessoas!
César Marques
Imagem de capa: esta ilustração de 1910, publicada originalmente por Keppler & Schwarzmann em 1909, mostra um motorista acelerando pela estrada a fora, rodeado de recortes de jornais com títulos sobre o elevado número de acidentes de tráfego envolvendo peões atropelados por automóveis, incluindo o título sobre o motorista que foi acusado de homícidio em 1º grau de uma rapaz de 13 anos (Courtesia da Library of Congress)