Acumulamos porque temos medo de esquecer
Desconfio que todo o ser humano tem uma obsessão por recordações. Sejam memórias ou objectos ou objectos que personificam memórias, o ser humano ter um fervoroso medo de esquecer. Então acumula.
Acumulamos anos de casamento porque algures no passado decidimos que era a melhor altura para dar o nó. Acumulamos fotografias porque elas são a prova de que, pelo caminho, a moda mudou, as rugas se foram afundando e nasceram seres humanos com feições que nunca tínhamos verdadeiramente conseguido imaginar. Acumulamos decisões em caixas, preferências musicais, padrões, brinquedos e electrodomésticos que se estragaram.
Guardámos tudo, não fosse um dia o mundo tornar a girar do avesso e precisássemos de tudo o que um dia já nos fez felizes.
Então dispomos livros com cheiro a passado perto de almofadas amareladas (será que estavam assim quando as arrumámos?), sanefas forradas a tecido berrante, escrivaninhas que já não guardam nada, cassetes de vídeo que nunca mais veremos porque o leitor se avariou algures no tempo e já nem nos lembramos o que lhe fizemos. Revisitamos quase nunca os trabalhos de escola do início dos anos 90, quando eramos artistas cheios de potencial em digitintas ou enquanto pintores de pedras da calçada. Que perfeitos que sabíamos ser em sebentas da quarta classe, cheias de rigor e erros ortográficos. E que dizer dos brinquedos cheios de marcas que nos serviram a tantas aventuras!
Sim, é inegável: que glorioso e feliz que parece esse passado guardado em caixas de papelão que já não têm forma.
Mas e então que presente é este que nos incita a guardar para recordar? Seremos felizes só depois de tudo se consumar, só depois de voltarmos ao que já foi. E então o que é, e então o que será?
Arrumamos a vida em caixinhas para que a vida não tenha passado por nós sem se nos deixar marcar. Arrumamos para um futuro qualquer que nunca chega, porque nunca regressamos às ditas caixinhas para nos fazermos rodear novamente do que nos deu alegrias. Queremos mais e em novo. Queremos acumular intensos anos de casamentos, impensáveis aventuras, emoções inacreditáveis, livros irrepetíveis. Mas ali, na arrecadação. Para provar aos outros (e a nós mesmos) que foi tudo verdade, mas que os objectos nos ajudarão a sermos mais felizes. Agora.
Regressaremos a tudo isso quando os anos nos disserem que já não sobra muito futuro. Quem o diz é a minha avó. E eu acredito nela; porque ela tem uma arrecadação completamente vazia.
Joana Martins é especialista em redes sociais e multimédia e vive em Telheiras desde que se lembra. Fala muito e escreve menos do que gostaria. Mas em tudo o que escreve há-de haver sempre um denominador comum: as pessoas.
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Bruno Moreira